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Contos sem nó

As minhas histórias

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02.10.22

Cancer, I hate you


Lila

Passaram já os tempos em que a palavra cancro era proibida. Não se utilizava em conversas privadas, nem em frente ao doente, muito menos em televisão. Vitima de doença prolongada, eram assim anunciadas as mortes de personalidades nos telejornais. Tem uma coisa ruim, ouvia-se por aí.

A minha mãe morreu há 27 anos, vitima de cancro. Um tumor na cabeça que lhe provocou um sofrimento imensurável. Que nos roubou a mãe, a avó, a amiga, a confidente, a companheira de vida. Que nos roubou o colo. Que lhe roubou o resto da vida, tantas memorias ainda por construir, tantos momentos felizes para viver, tantos beijos para dar.

Actualmente, vivem-se tempos de romantização do cancro. Muito devido à divulgação do percurso de doentes conhecidos do publico que fizeram da sua patologia um símbolo de conhecimento interior, mudança de estilo de vida, o melhor que lhes podia ter acontecido. Morreram este verão duas dessas personalidades, que nos habituamos a ver positivas frente à queda do cabelo, frente aos tratamentos agressivos, frente à dramática perda de peso, frente à iminente possibilidade de deixar tudo isto precocemente. Não condeno quem o faça.

Mas deixem-me não conseguir amar este filho da puta. Não me obriguem a achar que ficar doente com um cancro é uma nova oportunidade, ou que o sofrimento vale sempre a pena. Porque sofrer com uma doença não vale nunca a pena. Sentir dor, ver o cabelo a cair, ficar deformado, emagrecer horrores, ter sintomas terríveis por causa dos tratamentos agressivos, mas imprescindíveis, não é um novo nascimento. É sofrimento puro e duro.  Não só para os pacientes, mas também para quem está à volta. Família, amigos, cuidadores. A sensação de impotência é gigante e por muito que a ciência tenha avançado, continua a ser uma doença terrível, com um prognostico sempre reservado, repleto de surpresas, quase sempre más. Receber este diagnostico é muitas vezes sinónimo de perda de qualidade de via, ainda que temporariamente. E todos sabemos como a vida é curta e preciosa. Não é preciso um cancro para nos vir ensinar isso.

Deixem-me, como filha de uma vitima de cancro, com tudo o que sofri e vi sofrer, odiar o cancro. 

Amanhã, o meu cunhado Pedro, 56 anos, casado com a melhor irmã do mundo, dois filhos, uma neta e outra a caminho, empresário de sucesso, trabalhador incansável, o genro a que o meu pai chama filho e as cunhadas consideram irmão, um ser humano excelente, vai ser operado para retirar o tumor que lhe bloqueia a passagem do estômago para o intestino. O tumor que o fez emagrecer 18 quilos em três meses, perder o cabelo e a força. O tumor que o fez passar por tratamentos agressivos de quimioterapia. 

O tumor que não o fez aprender absolutamente nada.

Eu, vou ficar por aqui a lembrar os dias em que me aturavas para poder namorar a minha irmã (fui sempre a vossa vela), os dias em que saia da porta da nossa casa com as pernas de fora da janela do teu carro, em sinal de protesto por nos ires buscar numa carrinha só com dois lugares, a pensar em todas as vezes em que te pregávamos partidas.

Esta foi a partida mais dura da tua vida, mas tal como com as nossas, tenho a certeza de que vais acabar a rir à gargalhada.