Ainda estou aqui
Vimos ontem e nem consegui escrever sobre isso logo, havia demasiado para digerir. Nem quero cair no elogio a Fernanda Torres pelo papel da sua vida- já todos o fizeram. Foquei-me na transformação física que o sofrimento nos pode causar e que ela interpretou como se fosse vida real. Foquei-me no desencanto, na desilusão sem um pingo de revolta. Foquei-me na sua doçura como mãe e tive saudades da minha. E depois abstrai-me da insanidade da ditadura-vivida lá no Brasil mas também aqui pelos nossos pais-e voltei à minha casa de infância. As casas dos anos setenta e oitenta tinham um estilo particular. Muitas e pequenas divisões, mobílias escuras, cortinas coloridas, soalhos de madeira, o gira discos na sala, posters nas paredes. Vi a minha mãe e a minha avó na cozinha, o bolo de ananás e o arroz doce que nunca ninguém mais conseguiu reproduzir. E voltei a dançar com o Amadeu e com a Isabel, amigos de sempre dos meus pais, nos serões passados na casa deles-as duas famílias juntas. Ouvi o som das nossas gargalhadas. Cheirei os cigarros fumados na sala. Senti os picos das camisolas de gola alta no meu pescoço e o desconforto das calças de fazenda. Revi as vezes que herdei- cheia de orgulho- a roupa da minha irmã ( era exactamente igual à minha, mas noutra cor). Vi os vestidos da minha mãe , com padrões as saias tubulares pelo joelho, clássicas e tão bonitas. ‘Ainda estou aqui’ fez-me voltar para lá. E sentir a nostalgia dos anos que foram bons porque os nossos pais eram boas pessoas. Pessoas que resistiram à ditadura sem ressentimentos. O Brasil viveu também o nosso drama, arrisco-me a dizer que bastante mais violento. E não perdeu o sorriso, não perdeu o açúcar do português com sotaque. Que orgulho na geração que antecedeu a nossa. Foram pessoas de outra fibra.